"...o que ocorre com os animais, breve acontece com o homem. Há uma ligação em tudo.” Trecho da carta do cacique Seattle ao presidente norte-americano
O bem-te-vi da foto perdeu o seu lar, o seu lar doce lar, construído por ele mesmo, fio a fio, raiz a raiz, palha a palha, num local maravilhoso que lhe foi dado pela Mãe Natureza. Ele morava num lindo coqueiro, alto, imponente, de onde se podia avistar toda a redondeza de uma rua tranqüila do Estrela D’Alva. Certamente dividia a árvore com outras criaturinhas, formigas, besouros, lagartas, cigarras...
Era feliz ali, com sua companheira. Ali criava seus filhotes. Num rompante, os pequeninos saltavam para a vida, voando pela primeira vez, jogando-se da enorme palmeira quando, já empenados, chegava o dia apropriado para deixar o ninho, tal como dizem as escrituras: deixarás pai e mãe...
Muitas gerações de bem-te-vis certamente passaram por ali. Talvez o tata-tata-tataravô dessa pobre e tristonha ave, a observar ao longe, já antevendo o despejo iminente, tenha nascido naquela palmeira. Falo deste bem-te-vi porque o conheço de algum tempo. Peito dourado, dorso em luto e uma boinazinha na cabeça. Todo dia, ele me acorda ao nascer do sol com as suas bentevivices, cantos potentes, maviosos, especiais, convidando a levantar para a vida.
Ele não perdeu sua casa pela ação furiosa da natureza, como aquela acontecida em São Luís do Paraitinga e na região sul-fluminense no ano passado. Nem em razão das barreiras que rolaram lá pelas bandas da região serrana do Rio de Janeiro, que mataram pessoas neste ano.
Ele perdeu o seu lar porque uma motosserra derrubou o seu coqueiro, sem razão alguma. A árvore não falava mal de ninguém, não se metia em política, em intriga, não era inadimplente em bancos, não assaltava, roubava. Não era Antonio Carlos nem Aguilar. Nada existia para que fosse sentenciada à morte e executada de forma tão cruel: ser cortada aos pedaços, um de cada vez, pelo animal-homem.
Sem ser procurada para eventual acordo, a avezinha foi despejada com sua companheira e filhotes. Não houve processo algum. Não foi permitido o contraditório, nem aviso prévio. O oficial de justiça não deu as caras por lá. Quem se importa com uma ave, um único passarinho? Claro: ninguém...
O coqueiro morreu assim, sem chance de defesa, no silêncio, observado por olhos impiedosos, ao menos negligentes e covardes. Talvez tenha gritado, chorado quando o aço chegou às suas entranhas, ao seu cerne, e derramou a sua seiva vital. Talvez tenha pedido por socorro, implorado clemência. “Olha as avezinhas, elas moram aqui...” Nada adiantou. As mãos assassinas continuaram seu trabalho. Tal o Cristo sangrando na cruz, a altiva palmeira, tão bela, com cachos ainda em florescência, em pleno vigor da sua existência, sucumbiu...
Adoniran já nos disse algo assim, pedindo licença para contar: “Mas um dia, nóis nem pode se alembrá. Veio os homens c’as ferramentas, que o dono mandou derrubar”. A “justificativa” é sempre a mesma: é o pogréssio..., é o pogréssio...
A árvore se foi. O bem-te-vi ainda circula pelas imediações, talvez sem compreender o que se passou. Outro dia, sentado no fio, contemplava o vazio onde outrora reinava, orgulhosa, a palmeira-lar, esbanjando vida e contribuindo com o ecossistema, e que fora a terra de seus pais. Que pensamentos lhe passaram pela cabecinha, quem haverá de saber? Dizem que os animais não pensam. Não creio nessa bobagem.
O bem-te-vi nasceu ali, seus filhotes também. Seus netos, porém, terão de encontrar outro local se quiserem dar continuidade à espécie.
Fico torcendo como nunca para que a pequena ave encontre um novo lar, seguro, onde possa, raiz a raiz, palha a palha, fio a fio, edificar seu novo lar e receber os seus filhotes, peladinhos como os bebês humanos...
Fico torcendo como nunca para que a pequena ave encontre um novo lar, seguro, onde possa, raiz a raiz, palha a palha, fio a fio, edificar seu novo lar e receber os seus filhotes, peladinhos como os bebês humanos...
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