quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

A pesca da tainha com o arrastão de praia: uma festa...


Tainhas no mercado do Ipiranga
Os antigos moradores de Caraguatatuba é que contam. A pesca da tainha através do processo de arrastão de praia era uma festa quando o peixe, a partir do mês de maio, começava a “encostar” aos milhares em nossas praias.

Eles falam sobre a forma como a pesca era praticada, com uma ponta de saudade no peito. Não é pra menos. Os tempos eram outros. Havia fartura, o peixe abundava em nossa região. O vilarejo, pequeno, se resumia numa comunidade em que as pessoas se conheciam umas às outras. Era a grande família. Um tempo que não volta mais.

Tião Bota
O último que relatou esse tipo de pesca foi Sebastião de Oliveira Souza, o Tião Bota, antigo morador do bairro Ipiranga, ex-vereador da cidade. Ele contou com entusiasmo como a pesca da tainha era praticada antigamente, para dizer, em seguida, que esse peixe está sumindo de nossas águas. “A tainha é capturada às toneladas no Sul, durante sua migração anual para desova no litoral do Estado de São Paulo. Chega a ser um crime ambiental”, lamenta o Tião.

O Caraguablog encontrou num trabalho científico a descrição dessa pesca relatada pelo Bota. Os locais citados podem não ser em Caraguá, mas se parecem muito, pois se trata do Litoral Norte do Estado de São Paulo, talvez Ubatuba. Os personagens também são outros. Mas a situação vivida certamente é a mesma que experimentaram os antigos moradores de Caraguatatuba.

Vale a pena conhecer os detalhes desse tipo de pescaria. Abaixo, duas descrições a respeito.

Primeira descrição:

No século 20 volta-se a ter registros expressivos sobre a pesca da tainha e do parati. O historiador Edson Silva, que a vivenciou na década de 1940, relata sobre a pesca com o “arrastão de praia”:
“A pesca da tainha, praticada pelo sistema de rede de arrastão, exigia um ritual que transformava a simples prática de puxar a rede à praia em um aparato de beleza que atraía toda a população da cidade para ver o espetáculo.
Isso acontecia principalmente durante o mês de maio, junho e julho. Nessa época a tainha chegava formando grandes cardumes fugindo das águas frias do sul. As redes eram especiais para esse tipo de peixe.
Os pescadores que possuíam esse tipo de rede, com malhas maiores e altura suficiente para chegar ao ponto mais profundo, se reuniam, convocavam seus ajudantes, denominados “camaradas”, para cada um ocupar a sua posição de trabalho.
Eram necessárias cinco ou mais redes, que eram emendadas (alinhavadas) para completar toda a extensão, saindo da praia, dando a volta por fora do cardume e voltando à praia, sem deixar espaço vago para o peixe não fugir. Era preciso mais de mil braças de redes.
Para localizar o cardume e saber quando estava no “lanço” (ponto exato para o início do lançamento das redes), eram escolhidos experientes pescadores chamados de “espias”, que de acordo com a quantidade de tainha que pulava, calculavam a quantidade de peixe que estava no cardume. Eles se posicionavam no mar e os de terra aguardavam o sinal que ele dava com o chapéu, avisando que o cardume estava no ponto de cercar.
Os espias que se destacavam eram: Candinho Manduca no Perequê-Açú, Constantino Duarte no Itaguá, Constantino Eugenio nas Toninhas, João Vitório na Enseada. Os grandes pescadores que possuíam redes para esse tipo de pesca eram: Antonio Athanásio da Silva, Alfredo Vieira, Didito e Neném da Luz na praia da cidade, Brazinho no Itaguá, João Glorioso no Saco da Ribeira e João Vitório na Enseada.
Quando o espia dava o sinal com o chapéu, os que aguardavam lançavam as canoas ao mar. Tudo era muito rápido porque as tainhas eram muito espertas e fugiam do lanço. Contornando toda a rede, dezenas de canoas permaneciam junto ao cabo da bóia, aguardando as tainhas que quando se sentiam cercadas, saltavam para fugir do cerco e caíam nas canoas.
Cada canoa possuía uma rede protetora vertical destinada a impedir que a tainha pulasse por cima da canoa e conseguisse fugir. Eles eram chamados de “aparadores”.
Na praia, os camaradas puxavam a rede em ritmo cadenciado e lentamente o lanço chegava ao fim. A expectativa da multidão que se reunia na praia era igual a dos camaradas que faziam previsões otimistas do resultado daquele lanço.
Quando toda a rede chegava à praia os camaradas preparavam o monte de tainha para começar a divisão. Os aparadores aguardavam nas suas canoas, para entregar aos donos das redes um terço do que conseguiram aparar. O resultado total do lanço era dividido entre os donos das redes, chamado de “quinhão”. Cada dono começava a divisão entre os seus camaradas.
Primeiro era separado o quinhão do santo, denominado de “tara”. Em cada cem tainhas era separada a mais bonita e maior que era vendida por um preço melhor e com o dinheiro faziam uma festa, em cada praia, ao fim de cada temporada de pesca.
Um terço era separado para o dono da rede, denominado de “mestre”. Os restantes dois terços eram divididos entre os camaradas. Com a posse da sua parte, cada um corria para vender o seu produto.
Entre os expectadores, muitos procuravam ajudar a puxar a rede e eram contemplados com algumas tainhas. Todos ficavam satisfeitos com o espetáculo e voltavam para casa aguardando o próximo lanço”.
   
Segunda descrição:

É feita por Gioconda Mussolini, em trabalho publicado originalmente em 1945. Depois de considerar que “a tainha, peixe cuja pescaria, além de constituir denominador comum na cultura litorânea, tem atrás de si toda uma série de práticas tradicionais que ilustram o tipo de organização da pesca caracteristicamente local”, ela analisa detalhadamente a pesca com o “arrastão de praia” e enfoca a pesca com as “redes de emalhar” ou “tresmalhos” utilizadas no cerco da tainha:
“O espetáculo do cerco da tainha é dos mais impressionantes. Os iniciados na pesca conhecem de longe quando o cardume se aproxima pela opacidade que forma n’água e pelo ligeiro marulhar, que ao leigo escapam.
De vez em quando, uma ou outra salta com o dorso prateado reverberando ao sol; pela simples direção do salto, sempre para frente ou para rumos diferentes, sabem se ela está desgarrada ou em manta. Em geral, nas praias em que a tainha é abundante, há o “espia”, velho pescador que conhece muito bem não só os hábitos dos peixes como os “movimentos” do mar em sua praia. Do alto de uma pedra, passa o dia todo, durante a época da tainha, a vigiar o mar. Avistada a manta, toca um búzio: é a “buzina da rede”.
Abandonam tudo que estão fazendo e correm para a praia, atendendo ao chamado. Canoas e redes já estão prontas para serem roladas ao mar. Seguem as canoas que vão fazer o cerco e, no seu encalço, as que vão “aparar”. O espia continua na praia controlando os movimentos. Dele partirá a ordem para o lançamento: um simples movimento de braços.
O toque do búzio tem que se dar quando o peixe está a uma distância suficiente para que haja tempo para tudo: puxada da canoa para o mar, embarque, emenda das redes. E tudo isso com um mínimo de barulho (nas redes destinadas à tainha, na tralha de chumbo, em lugar de chumbo, usam-se saquinhos de lona cheios de areia grossa, para evitar o barulho nos bordos da canoa e não espantar o peixe arisco) e o máximo de rapidez. Está formado o cerco. 
Arisca como é, a tainha tenta saltar para fora do obstáculo, principalmente porque, para excitá-la, se bate com os remos nos bordos da canoa e mesmo dentro d’água. Mas difícil é escapar: complementando o trabalho das canoas e dos tresmalhos, dispõem-se nas proximidades as chamadas “canoas de apara”, dotadas de uma espécie de anteparo de rede, içado perpendicularmente em um de seus bordos com o auxílio de varas móveis, formando uma parede contra a qual o peixe, no salto, vai bater, caindo dentro do bojo da canoa.
Terminado o cerco, desatam-se as redes e cada canoa volta recolhendo a rede e o peixe “emalhado”, e voltam à terra com o respectivo carregamento que vai se amontoar num lugar comum para a partilha. Pelos varais suspensos à frente das casas, por muito tempo se verão expostas ao sol, a secar, as tainhas salgadas que irão constituir a reserva nos momentos de escassez”.
  Fonte:  Instituto  de  Pesca do Estado de São Paulo - “Abordagem Histórica
 da Pesca da Tainha e do Parati no Litoral Norte do Estado de São Paulo” -
 autores:  Roberto  William von Seckendorff e Venâncio Guedes de Azevedo
O Blog de Caragua - k

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