segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Reportagem especial: Quando a natureza mata

A cidade contava no último verão com 52 famílias morando em onze áreas de risco. Na época, estudava-se um meio de evitar a ocupação de encostas e regiões sujeitas a alagamentos. Mas a questão não é tão simples de resolver. 
Curva da Casinha, na Serra: deslizamentos, caos. Foto do Blog do Estadão

Hoje, o número de áreas de risco aumentou de 11 para 19, segundo relatório emitido em novembro pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas, IPT. Embora sejam 29 as moradias a serem removidas, a situação inspira cuidados pela proximidade das chuvas torrenciais de verão

O crescimento desordenado do município traz conseqüências desastrosas para a sua população. A especulação imobiliária e as dificuldades de fiscalização completam um quadro de complexidade. O resultado são deslizamentos de encostas, enchentes, soterramentos, prejuízos materiais, mortes.

Os bolsões de pobreza pioram os modos empregados pelo homem para fugir das intempéries. Em busca do abrigo seguro, ele acaba improvisando. Surgem os barracos, as favelas, geralmente em áreas ecologicamente protegidas ou sujeitas a deslizamentos ou alagamentos. São as áreas de risco.

A menor chuva traz apreensão aos seus moradores. O pânico impera quando a terra cede e encobre o barraco ou quando a água alaga tudo – mais ainda quando mata famílias inteiras. As pessoas estão ali não por desejo próprio, mas premidas pela necessidade.

É nesse momento que o poder público precisa agir, identificando essas áreas, removendo famílias, destruindo barracos ameaçados, executando serviços de infra-estrutura, implementando programas sociais que diminuam a exposição dessas pessoas aos riscos naturais ou provocados. É quando entra em cena a defesa civil.

DEFESA CIVIL

O Sistema de Defesa Civil no Estado de São Paulo foi instituído em 1976. A sua criação foi inspirada na tromba d’água que caiu sobre Caraguatatuba em 18 de março de 1967, matando oficialmente cerca de 500 pessoas, mas suspeitando-se que esse número tenha superado a casa do mil. Muitas pessoas e famílias inteiras nunca foram encontradas, jazendo soterradas pelas encostas da Serra do Mar.

O Sistema de Defesa Civil, que também teve como inspiração os incêndios dos edifícios Andraus (1972) e Joelma (1974), com centenas de vítimas, foi reorganizado em 1995 pelo governador Mário Covas. A população paulista percebeu a necessidade de criar um órgão que pudesse tanto prevenir a ocorrência desses eventos como minimizar os seus efeitos, através de uma ação rápida entre órgãos públicos e comunidades atingidas.

O sistema estrutura-se por uma coordenadoria estadual, a Cedec, subordinada ao gabinete do Governador, seu órgão central; coordenadorias regionais, as Redec; e 14 coordenadorias setoriais, que atuam no interior do Estado e na região metropolitana. Incumbem-se da formação, orientação e o apoio às coordenadorias municipais, as Comdec.

ATUAÇÃO EM CARAGUÁ

Este enorme toco, remanescente da catástrofe de 67, dá
testemunho da violência das águas que desceram pelas encostas.
Abandonado, tomado de mato, apodrece debaixo dos fios de
alta tensão. O senso comum indica que deveria estar protegido
no museu da cidade.
No último verão, precisamente até o dia 9 de fevereiro, a defesa civil do Estado já havia registrado 123 municípios em situação de risco – seis em estado de alerta, 43 em observação e 74 atingidos por algum tipo de desastre natural, inclusive com vítimas fatais.

Em Caraguatatuba, em meio a notícias alarmantes de enchentes e escorregamento de encostas em municípios vizinhos e da região, com dezenas de mortes, a situação foi tranqüila, apontando apenas um deslizamento na zona sul.

As enchentes, no entanto, não deram trégua nos primeiros meses do ano. Em janeiro houve duas ocorrências envolvendo famílias em áreas de risco, uma no Jaraguazinho e outra no Morro do Chocolate (descida do Jetuba). As famílias foram levadas para casa de parentes e abrigos da prefeitura por agentes da defesa civil e a situação se resumiu nisto.

Celso de Souza e Silva, 51, o Miudinho, o então responsável pela comissão municipal de defesa civil, a Comdec de Caraguatatuba, confirmou que os alagamentos são problema crônico na cidade. “Quando ocorrem chuvas mais fortes, praticamente a cidade inteira apresenta pontos de alagamento, mas basta parar por cerca de uma hora para que a situação se normalize. Isto é devido à condição de Caraguatatuba de cidade baixa em relação ao nível do mar”, afirmou. Ele considera bom o sistema de drenagem, que permite rápido escoamento, sem maiores conseqüências.

ÍNDICES PLUVIOMÉTRICOS

Há três locais de captação de chuva para aferição dos índices pluviométricos no município, um na estação de tratamento da Sabesp, na Martim de Sá, outro na subprefeitura do Massaguaçu e o terceiro na subprefeitura do Porto Novo.

As medições são feitas diariamente durante o verão e repassadas para a unidade do corpo de bombeiros de São José dos Campos, que as envia ao Gabinete Militar do Governo, órgão central de defesa civil do Estado e onde se unificam as informações.

Para se ter uma idéia, até o dia 9 de março deste ano se registraram 63 mm3 de chuva, abaixo do limite pluviométrico suportado pelo município, que é de 120 mm3/mês. A partir desse limite, a defesa civil entra em estado de alerta. Em janeiro as chuvas foram mais intensas, registrando-se 237,7 mm3, o mesmo se repetindo em fevereiro, com 158,3 mm3, o que provocou as enchentes e os alagamentos nos primeiros meses do ano.


No período das chuvas, a defesa civil conta com o Plano Preventivo de Defesa Civil, o PPDC, que vai de janeiro a março. “Durante esse período, por força de um decreto do prefeito, todas as secretarias municipais ficam à disposição da defesa civil em caso de eventos desastrosos e devem prestar toda a colaboração em equipamentos, materiais, profissionais e servidores – o apoio é integral”, conta Miudinho.

ACIONAMENTO DA DEFESA CIVIL 

Eugênio Campos Júnior, 
presidente da Comdec
A defesa civil fica 24 horas de plantão, na av. Rio de Janeiro, 451, Jardim Primavera, perto da delegacia de polícia. Conta com um caminhão e uma caminhonete e quatro funcionários; os seus recursos provêm do gabinete do prefeito. Fones: 199 ou 3882-3520. O Capitão da Reserva Eugênio de Campos Júnior é o atual Presidente da Comissão Municipal de Defesa Civil, a Comdec, celular nº 12 7813-8948 - ID 96 15501.


A defesa civil deve acionada em casos de deslizamentos de encostas da Serra do Mar onde há moradores, escorregamento de estradas, mesmo nas laterais de rodovias, enchentes de rios, alagamentos, queimadas; acidentes de trânsito com vazamento de produtos tóxicos; corte e poda de árvores em risco e captura de abelhas, marimbondos e vespas; atua na remoção de famílias em áreas potencialmente perigosas, como marginais de rios sujeitas a alagamentos.

FAMÍLIAS

Quanto à ocupação de áreas ecologicamente protegidas, setores da prefeitura, como secretarias de Serviços Públicos e Assistência Social, realizam ações visando à retirada de famílias desses locais, em especial se os pontos apresentam algum risco à integridade física.

Levantamento feito no início do ano identificou a existência de 52 famílias residindo em locais de risco, cuja remoção está sendo estudada, sendo retiradas todas as famílias que residiam na beira do rio. Hoje, segundo relatório emitido em novembro pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), são 29 as moradias que ainda devem ser removidas.

Quando a remoção familiar é de caráter permanente, o imóvel é destruído se estiver em área de preservação ou em mau estado, evitando-se novas ocupações. Se a remoção é temporária, as pessoas são levadas a casas de parentes ou abrigos da prefeitura – escolas, ginásio de esportes, centros comunitários.

ÁREAS DE RISCO

Prevenir sempre, para não
lamentar depois...
No início do ano eram onze as áreas de risco. Hoje, esse número de áreas de risco aumentou para 19, segundo o mesmo relatório IPT. Elas estão localizadas no bairro Jaraguazinho, Rio do Ouro, Benfica, Jardim Francis (morro da Martim de Sá), Sumaré, Cantagalo, Casa Branca, Olaria, Jardim Santa Rosa (Morro do Chocolate, na descida do Jetuba, ao lado da rodovia), Tinga de Cima e Jardim Itaúna, no final do Tinga. Basicamente são áreas localizadas nas encostas da Serra do Mar e marginais de rios.

Muitas dessas áreas, como o sopé do Morro de Santo Antonio, no Sumaré, e Morro dos Mineiros, no Cantagalo, e ainda as marginais do Rio Guaxinduba, também no Cantagalo, enfrentam processo acelerado de enfavelamento, com centenas de ocupações desordenadas e clandestinas.

Basta olhar para a base do Morro do Mirante durante a noite para comprovar. As centenas de luzinhas na mata indicam cada ocupação irregular. Como obtêm energia elétrica é algo a ser investigado pelas autoridades; clandestinas, legalmente não teriam como ter acesso a ligações.

ALAGAMENTOS

Além dos deslizamentos, o transbordamento dos rios e alagamentos ocasionados pelas chuvas são problema que desafia a ação governamental. O bairro do Rio do Ouro sofre com enchentes no ponto onde termina a rua Irmã São Francisco. Ali, a situação é delicada e inúmeras famílias entram em desespero quando a chuva engrossa um pouco mais.
Alagamento defronte da Secretaria de Administração e da Câmara de Vereadores

Todavia, não são apenas os bairros periféricos que enfrentam esse problema. Na esquina da Frei Pacífico Wagner com a rua Sebastião Mariano, no coração da cidade, a situação não é diferente. O mesmo ocorre defronte da Câmara Municipal, da secretaria de Administração e da prefeitura. A Anchieta, a avenida da praia e a av. Brasil, no Ipiranga, igualmente possuem pontos críticos de alagamento.

A verdade é que o escoamento nesses locais é rápido, demandando poucas horas para a situação se normalizar. Mas não deixa de ser desconfortável aos moradores, motoristas, transeuntes e turistas depararem-se com casos assim a cada chuva forte. Uma situação, enfim, a ser enfrentada com uma dose extra de determinação.

CATÁSTROFE COMPLETA 44 ANOS EM 2011

Quem presenciou a tragédia não a esquece jamais. Hoje, mais de quatro décadas depois, as pessoas ainda se emocionam quando se recordam daqueles dias que sucederam o 18 de março de 1967. Se acontecesse hoje, ninguém sabe quais seriam as conseqüências.

Rio do Ouro e Ponte Seca: o que sobrou. Foto: Blog do Estadão
A história local mostra que os fenômenos climáticos costumam se repetir ao longo das décadas, provocando grandes estragos e inundações.

Um ofício do presidente da Província, datado de 21 de fevereiro de 1859, por exemplo, registra “...devido aos repetidos temporais de pesadas chuvas, que há mais de um mês desaba em todo o município, em especial um que houve no dia 20 de janeiro, que por um pouco não arrasa Caraguatatuba...” Fato semelhante se repetiu em 1944.

Não se pode, assim, perder de vista a tragédia de 67. Inibir a ocupação de encostas e a existência de núcleos residenciais em locais sujeitos a enchentes ou deslizamentos é preciso. Um plano diretor deve orientar na expansão da cidade e na formação de novos núcleos residenciais. Não se admite que no futuro sejamos responsáveis pela morte de pessoas ante a nossa omissão no momento presente.

Memorial da catástrofe, no cemitério municipal. Aqui 
repousam os restos mortais dos que sucumbiram em 67. 
As madeiras entrelaçadas lembram a quantidade enorme 
de árvores arrastadas pelas águas. Obra é do arquiteto caiçara 
formado pelo Módulo, Mauro Apingorá.
O memorial dos mortos da enchente erigido no cemitério local é importante como um alerta concreto. O toco da catástrofe existente na rua Irmã São Francisco também deveria ter semelhante significado. Tudo para que vítimas de 67 não tenham perecido em vão. O seu sacrifício, que ensejou a criação do sistema de defesa civil no Estado, poupando vidas, também deve servir de advertência para que o homem avalie melhor sua atuação no meio ambiente. A natureza, quando agredida, responde matando. Os exemplos são muitos.

DIA DE REFLEXÃO SOBRE O MEIO AMBIENTE

Poucos se dão conta, mas o dia 18 de março, a teor da lei municipal 1565, de 1989, é instituído no calendário oficial de Caraguatatuba como o Dia da Reflexão sobre o Meio Ambiente.

Nesse dia, deveriam ser realizados eventos de conscientização dos cidadãos, em especial estudantes, sobre a importância do tema. Os órgãos públicos do município deveriam dedicar uma hora de seu expediente para realizar com seus funcionários eventos com fins ambientais educativos. Também deveria ser observado luto oficial para reverenciar a memória daqueles que tombaram de 18 de março de 1967. Deveria, deveria, deveria...


LEI Nº 1.565
(Institui o Dia da Reflexão sobre o Meio Ambiente e dá outras providências.)
Doutor José Bourabeby, Prefeito Municipal da Estância Balneária de Caraguatatuba Municipal aprovou e eu promulgo a seguinte lei:
Artigo 1º – Fica instituído o “Dia Municipal de Reflexão sobre o Meio Ambiente”, a ser comemorado no dia 18 de março.
§ 1º- Caberá ao Departamento de Educação e Cultura da Prefeitura Municipal, coordenar e organizar os eventos, que terão a finalidade de conscientizar os cidadãos em especial os estudantes, sobre a importância do tema.
§ 2º- Os órgãos públicos com sede no município deverão dedicar-se neste dia, uma hora de seu expediente para organizar e realizar com seus funcionários eventos alusivos a data, com fins ambientais educativos.
Artigo 2º – Na mesma data, deverá também ser observado luto oficial, para reverenciar a memória das vitimas da catástrofe de 18 de março de 1967, neste município.
Artigo 3º – Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário,
Caraguatatuba, 14 de abril de 1989.
Doutor José Bourabeby - Prefeito Municipal

O RELATO DO CAOS

O livro “Santo Antonio de Caraguatatuba”, editado pela Fundacc, registra o que foi a catástrofe de 1967. 

“Cada pedaço de terra de um bairro desta cidade poderá ter sepultado vários habitantes, transformando em um grande cemitério. Muitos corpos jamais foram encontrados, principalmente aqueles  que foram arrastados para o mar e impelidos pelas ondas para pontos bem distantes.
Blog do Estadão: registro do que sobrou de Caraguá...
De acordo com o posto da Fazenda São Sebastião, ou "dos Ingleses", os níveis pluviométricos no mês de março registraram um índice máximo de 851 mm3 - sendo 115 mm3 no dia 17 (março de 1967) e 420 mm3 no dia seguinte, não acusando índice maior devido à saturação do pluviômetro. O rio Santo Antônio, que corta a cidade, alargou-se de 40 para 200 metros. Famílias inteiras dessa pobre gente ficaram soterradas sob toneladas de lama, sem que se saiba, até hoje, quem eram as pessoas, ou que nomes tinham. Falou-se em 500, mas sabe-se que foi muito mais. Caraguatatuba está submersa e isolada de todos. 
No dia 18, às 13 horas, veio a avalanche total de pedras, árvores e lama dos morros Cruzeiro, Jaraguá, Jaraguazinho, próximos da cidade. Às 16h30, outra frente abria-se no vale do rio Santo Antonio e este se alargou de 10-20m para 60-80m. No bairro Rio do Ouro, gigantescas barreiras começaram a cair pela manhã, formando uma enorme represa que estourou algumas horas mais tarde, desaparecendo com o bairro e provocando o deslocamento da ponte principal do rio Santo Antonio. Caso não tivesse acontecido esse deslocamento, a cidade inteira teria sido inundada e coberta pelas águas. 
A estrada da serra, em sua maior parte, foi destruída, não sendo possível reconhecer seu antigo traçado em muitos trechos, onde se formaram precipícios de mais de 100 m de profundidade. A estrada de Ubatuba sofreu quedas de barreiras nos trechos de Maranduba, Jetuba, Sumaré, Prainha e Martim de Sá, recobrindo seu leito em 80 cm de lama. 
Um balanço da situação em 21 de março de 1967 apresenta o seguinte quadro: 30 mil árvores desceram as encostas do morro e se espalharam em volta da cidade; cinco mil troncos rolaram e soterraram casas, destruindo parte da BR-6; 400 casas desapareceram debaixo da lama; um ônibus lotado de passageiros desapareceu e vários carros ficaram isolados; na Fazenda São Sebastião havia dezenas de mortos e feridos; três mil pessoas, aproximadamente, perderam suas casas; 120 mortos já haviam sido encontrados; o número exato de mortos não poderão jamais ser computados, pois dezenas de pessoas desapareceram, não restando vestígios. O município contava 15 mil habitantes”.
Reportagem especial produzida pelo Caraguablog
O Blog de Caraguá - k 


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